Sempre achei que, tal como o enorme peso que assenta no nosso coração com uma morte, um desgosto de amor cai-nos no centro do coração com um impacto que só uma morte tem. E note-se, não estou a falar de desgostos de amor comuns, onde para ambas as partes é relativamente fácil reecontrar outra pessoa. Estou a referir-me aos Grandes, mesmo muito Grandes, desgostos de amor. Daqueles que, por serem de tal ordem grandes, representam para nós uma morte. E sim, isto é possível. Porque, no limite, há várias partes algures dentro de nós que morrem.
Na minha opinião, um desgosto de amor destes é capaz de nos mudar. De nos tornar, em certa medida, mais frios, mais distantes, mais calculistas. Calculistas no sentido de não termos já grandes ilusões sobre o amor e as outras pessoas. Tornamo-nos mais cuidadosos com as nossas escolhas, tornamo-nos mais criteriosos, mais pragmáticos, mais esforçados e, indiscutivelmente, mais responsáveis.
Saint-Exupéry, n'O Principezinho, escrevia que, quando amamos e cativamos algo ou alguém, tornamo-nos responsáveis por essa pessoa ou pelo que amamos. Mas Saint-Exupéry, apesar de ter escrito sobre o afastamento e a perda, referindo que corremos o risco de chorar e de nos sentirmos tristes e dando-nos como solução as boas memórias - a capacidade humana que todos tempos de guardar os outros, no nosso coração - esqueceu-se de quando os outros nos magoam. E acho que se tivesse escrito sobre isso, seria algo como: da mesma maneira como nos tornamos responsáveis pelos outros que amamos e cativamos, quando temos um grande desgosto e ficamos irremediavelmente sós, devíamos tornarmo-nos responsáveis por nós mesmos e tomarmos conta de nós. Fecharmos as nossas próprias feridas.
Acho que nem é tanto a perda que sentimos, ou a ausência, que custa mais. Acho que o que custa mais é percebermos que tudo aquilo em que acreditámos se desvaneceu num piscar de olhos e que verdades antes absolutas para nós, passam a ser enormes dúvidas existenciais.
Achamos inevitavelmente que em tempos nos desprendemos de um porto de abrigo e nos deixámos levar ao sabor do vento pelo mundo fora e que toda a coragem e força que isso exigiu de nós, foi, no fundo, em vão.
Achamos inacreditável. Tudo inacreditável. Mas com o tempo percebemos também que é a verdade e que, ou aprendemos a viver com ela ou aprendemos a viver com ela. Não nos restam mais hipóteses.
Começamos também lentamente a dar muito mais valor a pequenas coisas e vemos a vida de um modo diferente. Coisas como chegarmos a casa e não nos sentirmos vazios, num dia, são um grande progresso. São uma pequena vitória. Coisas como darmos por nós a rirmo-nos à gargalhada são o ponto de arranque que precisamos para voltarmos a ser felizes.
Até ao dia em que reparamos que estamos mais calmos, tranquilos com a vida. E começamos até a pensar nas coisas boas que vieram ter connosco graças ao que passámos. Olhamos para o desgosto com um olhar diferente. Já não vemos só a tragédia. Vemos também várias coisas boas. Permitimo-nos até perceber que se calhar não estávamos assim tão felizes, tão bem e que o futuro que nos aguardava não era assim tão bom.
O melhor de tudo? O melhor de tudo é pensarmos que, com a perda, a vida deu-nos basicamente uma oportunidade para termos alguém melhor, sermos mais felizes e vermos em nós muito mais valor. Melhor ainda do que isto, só a pessoa que nos deu o enorme desgosto se arrepender profundamente e nós não lhe permitirmos voltar. Isso sim, faz-nos sorrir, por vermos o quão fortes e exigentes nos tornámos.
E assim sendo, não há muito mais a fazer do que sorrir. É que não só nos livrámos de um futuro pouco feliz, como ainda temos a certeza de que algo muito melhor, mil vezes melhor, virá.